Contribuinte pode retomar créditos de ICMS não aceitos em compensação

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ensamos que tal proibição é inválida à luz da capacidade contributiva e do não confisco, pois se trata de débitos e créditos de um mesmo sujeito passivo, ainda que ora posto na condição de contribuinte, ora na de responsável.

De notar que são débitos próprios, para fim de compensação no âmbito federal, “os débitos por obrigação própria e os decorrentes de responsabilidade tributária apurados por todos os estabelecimentos da pessoa jurídica” (Instrução Normativa 1.717/2017, artigo 65, parágrafo 3º), o que autoriza, por exemplo, o uso de créditos de IRPJ para a quitação de débitos de IR-fonte. E que tal fungibilidade ocorre também contra a vontade do particular, na chamada compensação de ofício: segundo o artigo 92 do mesmo diploma, imputam-se em débitos de responsabilidade tributária os créditos de tributos próprios que o sujeito passivo detenha contra a Receita.

Seja como for, pode ocorrer que a empresa que intentou tal compensação desista de levar o tema ao Judiciário após ter o pleito negado em definitivo na esfera administrativa (de fato, temos notícia de decisões administrativas contrárias, mas não localizamos nenhuma decisão judicial a respeito dessa matéria).

Nesse caso, cabe indagar: pode ela recompor a sua conta gráfica, reapropriando os créditos de ICMS próprio que utilizou na compensação frustrada? A resposta é positiva. De fato, a não cumulatividade do ICMS não é mera faculdade do contribuinte, mas sistemática inerente à forma de apuração do imposto. Tanto assim que, ao lavrar uma autuação, o Fisco deve considerar não só os débitos, mas também os créditos da empresa, sob pena de nulidade (STJ, 1ª Seção, EREsp. 602.002/SP, relator ministro Humberto Martins, DJ 27/8/2007; STJ, 2ª Turma, REsp. 1.250.218/ES, relator ministro Mauro Campbell Marques, DJe 9/3/2012).

As mesmas razões impõem ao Fisco aceitar a recomposição da conta gráfica do substituto diante do indeferimento da compensação. De fato, se não serviram para a quitação do ICMS-ST, que será exigido em dinheiro, os créditos de ICMS próprio devem ser restaurados para confronto com futuros débitos do imposto, sob pena (i) de ofensa à não cumulatividade (anulação de créditos em situação diversa das autorizadas na lei e na Constituição: isenção, não incidência e redução de base de cálculo[1]) e (ii) de enriquecimento sem causa do Estado, que exigirá em dinheiro a parte dos futuros débitos de ICMS próprio que poderia (ou melhor, deveria) ser extinta por compensação.

Definido o direito à reapropriação dos créditos, cabe indagar se ele se sujeita a algum prazo. O parágrafo único do artigo 23 da Lei Complementar 87/96 diz que “o direito de utilizar o crédito extingue-se depois de decorridos cinco anos contados da data de emissão do documento”. Há quem entenda que tal intervalo alude à própria compensação dos créditos, que se extinguiriam se não aproveitados até cinco anos depois da emissão da nota fiscal em que registrados. Nesse sentido há dois acórdãos isolados do STJ (2ª Turma, EDcl. no REsp. 278.884/SP, relatora ministra Eliana Calmon, DJ 22/4/2002; 2ª Turma, REsp. 717.627/MT, relator ministro Castro Meira, DJ 27/6/2005).

Entendemos que essa exegese ofende a não cumulatividade. De fato, embora não se possa excluir a desídia do contribuinte, o não aproveitamento tempestivo dos créditos decorre normalmente do fato de este ser acumulador estrutural, dadas a sua condição pré-operacional ou o formato de suas operações (vendas com alíquota superior à de compra, por exemplo). Em tal situação, impedi-lo de utilizar os créditos quando finalmente tenha débitos para lhes opor parece injusto e injurídico.

Diante disso, a interpretação que melhor prestigia a Constituição é a que toma o artigo 23 como definidor de um prazo para a mera escrituração dos créditos, e não para o seu efetivo aproveitamento. Essa a lição de Hugo de Brito Machado (Aspectos fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 145-146) e de Aroldo Gomes de Mattos (ICMS: Comentários à LC 87/96. São Paulo: Dialética, 1997, p. 165-166), entre outros.

Contudo, ainda que o prazo do artigo 23 fosse mesmo para a utilização, e que superados os cinco anos desde o nascimento dos créditos, a questão em análise mereceria um tratamento particular. Com efeito, a compensação do ICMS faz-se de modo unilateral pelo sujeito passivo e sob a condição resolutória da sua posterior homologação pelo Fisco, na esteira do que dispõe o artigo 150, parágrafo 1º, do CTN. Ora, na pendência da condição, o substituto supõe os débitos extintos e os créditos consumidos, não tendo como e nem por que pretender utilizá-los novamente.

É só com o indeferimento da compensação — ou melhor, com a sua ratificação pelo órgão de julgamento administrativo — que aquela presunção fica afastada e que essa pretensão surge. À falta de regra específica, a análise da sua viabilidade jurídica há de fazer-se à luz do artigo 108 do CTN, a saber:

“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I – a analogia;
II – os princípios gerais de direito tributário;
III – os princípios gerais de direito público;
IV – a equidade.
§ 1º. O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.
§ 2º. O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”.

Pois bem: o emprego de todos os métodos integrativos referidos no comando leva à conclusão de que os créditos podem ser reaproveitados em cinco anos, contados da data em que se tornar definitiva a decisão que rejeitou a compensação anterior (estamos aqui a expor a tese sucessiva, vale lembrar).

De saída, isso é o que decorre da aplicação analógica do artigo 168, inciso II, do CTN, que dá ao contribuinte cinco anos, a contar do encerramento do feito em que saiu vencedor, para pedir de volta o tributo que pagou em obediência a decisão desfavorável anterior. Pela mesma lógica, aquele tem cinco anos, a contar da decisão final que indeferiu a compensação sem invalidar os seus créditos, para reclamá-los de volta, por meio de novo encontro de contas. Anote-se que a aplicação analógica, no que toca ao aproveitamento dos créditos da não cumulatividade, dos comandos atinentes à prescrição da repetição do indébito constitui recurso comum na doutrina (José Eduardo Soares de Melo. Luiz Francisco Lippo. A não cumulatividade tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 142-143).

Analogia cabe ainda com o artigo 173, inciso II, do CTN, que prevê prazo de cinco para anos para novo lançamento, contados “da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado”. A anulação do lançamento por vício formal nada esclarece sobre a validade da pretensão fiscal, que pode ser renovada. Da mesma forma, o indeferimento da compensação em razão da inoponibilidade dos créditos com certos débitos nada diz sobre a existência e o montante dos primeiros, que podem ser reutilizados em cinco anos da data em que a decisão denegatória se torna irrecorrível. Em ambos os casos, trata-se de preservar as partes na relação tributária dos efeitos materiais (perda do direito) de seus erros formais (exigência mal fundamentada ou compensação mal formulada).

Analogia cabe, por último, com o artigo 74 da Lei 9.430/96, assim sintetizado pelo STJ: a declaração de compensação extingue o débito sob condição resolutória e pode ser indeferida em até cinco anos, dando ensejo a processo administrativo; findo este com manutenção daquela decisão é que se inicia o prazo para a execução pelo Fisco dos débitos cuja extinção foi frustrada (1ª Turma, AgRg na MC 20.634/PE, relator ministro Ari Pargendler, DJe 28/5/2013). Caso o indeferimento tenha se dado sem juízo sobre a validade e o valor dos créditos, acrescentamos nós, deve-se também abrir prazo de cinco anos, só que em favor do particular, para nova utilização daqueles.

Passando para os princípios gerais de Direito Tributário (inciso II do artigo 108 do CTN), tem-se que a capacidade contributiva e o não confisco seriam violados se um erro de interpretação — associado ao tempo necessário para a sua constatação definitiva — acarretasse perda de créditos, com a consequente exigência em dinheiro de débitos que poderiam ser com eles compensados. Sem falar que isso contraria o próprio conceito de tributo, que não permite o seu uso como sanção de ato ilícito.

Quanto aos princípios gerais de Direito Público (inciso III do artigo 108), tem-se que a sanção de perda dos créditos configuraria claro bis in idem, pois o indeferimento da compensação já impõe ao sujeito passivo o pagamento de multa e juros de mora sobre os débitos cuja extinção foi frustrada. Ademais, tratar-se-ia de penalidade irrazoável (violação ao dever de equivalência entre duas grandezas ou proibição do excesso) e desproporcional (violação aos critérios da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito).

Cabe ainda invocar o princípio geral do Direito segundo o qual a decadência e a prescrição punem a inércia de quem poderia ter agido, valendo lembrar que entre a declaração da compensação e o seu indeferimento final o particular estava impedido de reutilizar os créditos. Como leciona Caio Mário da Silva Pereira: “inicia o prazo de prescrição, como o de decadência, ao mesmo tempo em que nasce para alguém uma pretensão acionável (Anspruch), ou seja, no momento em que o sujeito pode, pela ação, exercer o direito contra quem assuma posição contrária” (Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 594-595).

A circunstância de tratar-se de reinício, e não de início, do prazo decadencial não obsta a aplicação desta clássica lição doutrinária. Dir-se-á que, ao contrário da prescrição, a decadência jamais se interrompe — afirmação que é acertada no Direito Civil, mas que comporta exceção no campo tributário, como demonstra o já referido artigo 173, inciso II, do CTN.

Também a equidade (inciso IV do artigo 108) corrobora a tese, sendo nítido, por todas as razões acima expostas, que a reabertura de prazo para o aproveitamento de créditos empregados em compensação julgada impossível é a solução que melhor realiza a justiça no caso concreto, tanto mais que a decisão desfavorável já acarretou para o contribuinte o dever de pagar os débitos cuja extinção se frustrou, com os consectários legais.

O caso não é de aplicação dos parágrafos do artigo 108 do CTN, pois a conclusão aqui sustentada não acarreta a exigência de tributo indevido ou a dispensa de tributo devido, mas apenas a recomposição do patrimônio do contribuinte. E nem cabe invocar o brocardo segundo o qual “quem paga mal paga duas vezes”, pois a sua aplicação se limita à desídia do solvens quanto à correta identificação do accipiens (Código Civil, artigos. 308-312), do que não se trata aqui.

Em suma, o direito à reutilização dos créditos prevalece e pode ser exercido sem prazo ou, na pior das hipóteses, em cinco anos da data em que se tornar definitiva a decisão que rejeitou a compensação anterior.

Por: Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

[1] “(…) 6. O STF nos Embargos de Declaração no RE 174.478-2/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, definiu, com precisão, a questão, in verbis: ‘A atual posição da Corte parece-me, portanto, bastante clara: a redução da base de cálculo do ICMS corresponde a isenção parcial e, não, como outrora se considerava, categoria autônoma em relação assim à isenção, como à da não-incidência. Observe-se que a interpretação dada pela Corte ao art. 155, § 2º, II, b, não representa ampliação do rol de restrições ao aproveitamento integral do crédito de ICMS, que remanesce circunscrito às hipóteses de não-incidência e isenção; entendeu-se, simplesmente, que a redução da base de cálculo entra nessa última classe, como isenção parcial, que é em substância” (STJ, 1ª Turma, RMS 29.366/RJ, relator ministro Luiz Fux, DJe 22/2/2011).

Fonte: Conjur

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