Uma estranha tributação de rendimentos inexistentes

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Por Hugo de Brito Machado Segundo

Paulo Ferreira possui dois imóveis urbanos. Em um deles, reside com esposa e filhos. O outro está desocupado. Comprou como investimento, mas o mercado mudou. Até tentou alugá-lo, mas não está fácil. Nesse cenário, Paulo se sensibiliza com a situação de uma irmã, em dificuldades e recentemente despejada do imóvel onde morava, e a ela cede o seu imóvel até então desocupado, gratuitamente. Acredita estar fazendo uma boa ação ao permitir que a irmã mais velha, que tanto o acolheu na infância, tenha agora onde morar, pelo menos até que sua situação financeira melhore.

Nos anos subsequentes, ao preparar sua declaração de Imposto de Renda, Paulo inclui todos os rendimentos recebidos, os quais são normalmente submetidos à tributação. Mas, mesmo assim, algum tempo depois é surpreendido com um lançamento feito pela Receita Federal, que lhe exige o imposto incidente sobre os aluguéis que não recebeu em relação ao imóvel cedido gratuitamente à irmã. Certo de haver um equívoco, Paulo questiona a fiscalização, comprovando a gratuidade da cessão. O Fisco, porém, insiste na obrigatoriedade de se pagar o imposto, invocando para tanto o artigo 41, parágrafo 1º, do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 9.580/2018), que na verdade reproduz o disposto no artigo 23, VI, da Lei 4.506/64, assim:

§ 1.º Na hipótese de imóvel cedido gratuitamente, constitui rendimento tributável na declaração de ajuste anual o equivalente a dez por cento do seu valor venal, ou do valor constante da guia do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU correspondente ao ano-calendário da declaração, ressalvado o disposto na alínea “b” do inciso VII do caput do art. 35 (Lei nº 4.506, de 1964, art. 23, caput, inciso VI).

Veja-se: não se está diante de situação na qual há suspeita de que o imóvel teria sido alugado e o contribuinte estaria a omitir do Fisco os rendimentos relativos ao aluguel. Não se trata de presunção da ocorrência do fato gerador, a partir de fatos indiciários, aspecto que poderia ser resolvido no campo da prova. A própria norma se refere, textualmente, à cessão gratuita. Ou seja, ainda que inteiramente incontroversa a gratuidade da cessão, será devido o Imposto de Renda como se o contribuinte tivesse recebido aluguéis equivalentes a 10% do valor venal do imóvel.

A disposição remonta a 1964, mas, como não existe constitucionalização pelo mero decurso do tempo, é o caso de indagar: é constitucional exigir Imposto de Renda sobre valores reconhecidamente inexistentes?

De acordo com a Constituição Federal, a União tem competência para instituir impostos sobre, entre outras realidades, “renda e proventos de qualquer natureza” (CF/88, artigo 154, III). Nos termos do Código Tributário Nacional, o imposto somente poderá ser exigido diante da “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” de renda e proventos de qualquer natureza, sendo a primeira “o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, e os segundos, “os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior” (CTN, artigo 43).

Nessa ordem de ideias, parece claro que na cessão gratuita não há aquisição de disponibilidade, seja econômica, seja jurídica, de qualquer acréscimo patrimonial decorrente do trabalho, do capital, ou da combinação de ambos. Aliás, não há ingresso algum, pois, como a própria legislação reconhece, a cessão é gratuita.

Poder-se-ia dizer, no caso, que o imóvel está à disposição do seu proprietário, que poderia, querendo, tê-lo alugado. Ao deixar de alugar para ceder à irmã, o contribuinte estaria abrindo mão, ou “dispondo”, do aluguel, sobre o qual teria, assim, “disponibilidade”. Esse seria um argumento em defesa da validade da mencionada hipótese de incidência do Imposto de Renda.

Não parece, contudo, que ele seja procedente. Não se pode comparar a situação de quem recebe uma importância em dinheiro, como ingresso novo em seu patrimônio e sem correspondente no passivo, e em seguida lhe dá uma destinação qualquer, ou mesmo o atira ao vento, com a de quem não chega a receber nada por ainda não fazer jus, juridicamente, a nada. Não se pode abrir mão do que não se possui. Lembre-se que o imóvel pode estar cedido gratuitamente até por não ter sido possível, por razões de mercado, alugá-lo.

Vale pensar, ainda, nos efeitos que referida hipótese de tributação poderia ter caso a ideia a ela subjacente — e o conceito de fato gerador que ela pressupõe — fosse adotada de maneira coerente em outras situações. Um advogado que patrocina os interesses de um colega sem nada cobrar, por razões de cortesia, ou cujo escritório possua algumas causas pro bono, teria de pagar o Imposto de Renda sobre os honorários que sequer chegou a negociar, e jamais cogitou de cobrar, dos quais, portanto, não tem disponibilidade, quer econômica, quer jurídica? O mesmo seria aplicável ao médico que em alguns dias atende pessoas carentes gratuitamente em seu consultório? E, em sendo tudo isso possível, uma doação de imóveis seria tributável pelo imposto sobre doações, ou pelo ITBI, visto que haveria um preço possível do qual o doador estaria abrindo mão? Poderia o legislador inventar que nesse caso também há renda, correspondente ao valor não recebido em virtude da doação?

O contrassenso revelado por tais exemplos parece dispensar considerações adicionais. Não se pode confundir a disponibilidade do contribuinte sobre um acréscimo patrimonial com a disponibilidade do contribuinte sobre seu trabalho ou os seus bens, os quais em tese podem, dependendo de como sejam utilizados, gerar para ele algum rendimento, ou não. Do contrário, até aquele que, podendo trabalhar, opta por não fazê-lo, teria de pagar o Imposto de Renda sobre os salários que “deixou de receber”. Criar-se-iam, com isso, impostos novos, a incidir sobre a generosidade, sobre o desemprego, ou até sobre o ócio. Os impostos seriam devidos sempre que o seu fato gerador, podendo ter ocorrido, não se verifique em virtude de escolha prévia do contribuinte, deitando por terra a própria ideia de liberdade. Mesmo pondo de lado todas as questões relacionadas à interpretação das normas de competência e às expressões nelas utilizadas, não parece, em tais situações, sequer haver capacidade contributiva que autorize tamanho desprezo à liberdade do sujeito passivo de definir o que fazer com sua vida e com o seu patrimônio.

Fonte: Consultor Jurídico

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